Todo maldito santo dia
PAULINO JÚNIOR
120 páginas, 2014
ISBN 978-85-60716-09-8
Prefácio de Nilo Oliveira
e ilustrações de Helton Souto Lima e Ubirajara Gonçalves Filho
Paulino Júnior estreou com "Todo maldito santo dia" (2014), livro premiado pela Academia Catarinense de Letras como ‘Melhor livro de contos publicado em Santa Catarina em 2014’. Participou do 5º Festival Nacional do Conto (Florianópolis), da Flipobre (web) e do circuito Arte da Palavra Rede: Sesc de Leituras. Lançou o livro-conto "Bife a cavalo" (Butecanis, 2015) e integra a coletânea de contos em meio digital "Cobain", organizada por Sérgio Tavares, em comemoração aos 25 anos de Nevermind, álbum da banda Nirvana. Foi cronista semanal do jornal Notícias do Dia (Florianópolis), de 2014 a 2016.
Vive em Florianópolis, Santa Catarina.
Um conto de Todo maldito santo dia
MERCADORIA
À venda. O meu preço é cotado por quem pode me comprar. Preço por conta própria nem em pensamento. Isso pode desagradar o comprador, que primeiro precisa saber se eu sirvo.
Deixei o rosto liso e o cabelo imóvel, coloquei um traje social e aqui estou. Ganhei a preciosa dica para usar camisa branca, porque não marca se suar. O desconforto é comum no começo, depois a gente se conforma e até gosta – sente um quê de importância. É igual um caixote jogado que virou mesinha de centro ao receber boa aparência.
Divido a vitrine com muitos como eu e a cada dia chegam mais. Poucos saem. Ainda assim não significa que foram comprados. Ontem mesmo um saiu: as pernas perderam a firmeza e o rosto estava desbotando. Quando isso acontece, permanecer é sentir um gosto de vitória.
Não tenho do que reclamar. É um aprendizado importante a trajetória da vitrine até a prateleira do Mercado. Não sou eu quem diz isso, mas os muitos conselheiros que sempre aparecem. Eles conhecem os compradores e querem nos ajudar. A taxa é até pequena diante daquilo que podem valer seus conselhos. Distribuem tanta atenção e gentileza, que até lembram a minha querida tia conversando com suas plantinhas: “Vocês precisam se fazer notar.”
Meus colegas entendem tudo errado. Tão logo o conselheiro da vez termina a palestra, eles se jogam e se acotovelam para ficar bem na frente da vitrine. Não têm noção de que todo mundo se espremendo forma um bolo sem forma, ficando mais difícil de identificar quem é o quê.
Isso é um exemplo válido do trajeto pelo qual estou passando. Atrair a atenção do comprador é tarefa que requer dinâmica e inovação. Assim, enquanto os desastrados colegas se amontoam, fico logo atrás, saltitando. Aproveito o pequeno espaço que sobra entre a massa e o teto. Quem reparar na cabeça que sobe e desce, saberá que se trata de alguém com diferencial competitivo.
Nossas ações aqui são limitadas (para quem não souber explorá-las): um passo para frente e fica obrigatório que o próximo movimento seja dois para trás; há a possibilidade de levantar o braço, mas apenas na altura necessária para o acotovelamento; e a ação mais fácil é ficar de joelhos.
Vou dar de graça uma dica importante: aproveite o impulso do passo e fique na ponta dos pés, sem sair do lugar, depois aplique toda força do corpo no intuito de chegar ao topo e você estará apto a soltar pulinhos. Aperfeiçoar o que lhe cabe é estratégia de qualificação.
Observando meus colegas, pude notar que a maioria é desqualificada. Isso é bom e é ruim. Bom porque pode me diferenciar. No entanto, sou avaliado dentro deste contexto e os compradores já vêm desanimados.
Os conselheiros dizem que a procura está grande, nós é que somos precários. A oferta não agrada aos compradores e ninguém vai querer comprar o que não presta. Isso é parte integrante do novo desenvolvimento econômico. Não é nada pessoal. Tenho que ter consciência de que há muitos para o mesmo fim, basta olhar ao redor. Porém, tão logo aconteça, não medirei esforços para mostrar o meu valor. Penso alto e mal vejo a hora de exercer Humildade, Tolerância e Solidariedade. Qualidades que não são para qualquer um, só para os bem inseridos.
Estou à venda hoje e amanhã. Os conselheiros nos orientam a pensar assim. Manter o que chamam de “consciência de vitrine”. Ou seja, sempre haverá oferta melhor desde que a gente consiga mostrar qualificação, aptidão, preparo, execução e diferencial. A viabilidade gera nosso valor, e só como funcionais estabelecemos relações uns com os outros. Tenho fé de que compreenderão minhas sutilezas e dotes especiais. Quando isso acontecer... não serei mais entendido como coisa comum.