Publicada na revista Gulliver - Cultura, História & Questões Contemporâneas, em 15 de dezembro de 2020. Vide https://revistagulliver.com.br/reportagens/entrevista/patricia-galelli-livro-infantil-gato-atomo/
Leitura indicada no campo da literatura infantil brasileira contemporânea
Tempo médio de leitura: 8 minutos
Por Carol Macário
Patrícia Galelli fala sobre primeiro livro infantil,
“Gato-átomo”, uma obra genial
que nos relembra como é bom imaginar
Gato-átomo é um dos bons lançamentos de 2020 e mostra toda a genialidade da escritora em uma narrativa deliciosa sobre as peripécias de uma menina que segue um gato invisível em aventuras cotidianamente inventadas. (...) Autora dos elogiadíssimos Carne falsa (Editora da Casa, 2013) e Cabeça de José (Editora Nave, 2014), além da publicação de artista Um bicho que, Patrícia Galelli nasceu em Concórdia, no Oeste de Santa Catarina. (...) Nesta entrevista, a autora fala sobre a pulsão do inventar, o processo de escrita para crianças e nos convida a lembrar que estamos vivos e que todas as histórias importam.
É o teu primeiro livro infantil. Como é escrever para crianças, o processo foi diferente em relação aos teus outros livros?
Foi bem diferente. Certo dia estava eu na biblioteca e jupt, algum espectro passou bem do lado das minhas canelas. Primeiro, pensei que fosse um cachorro, mas logo aquilo deu um salto e ficou bem no alto, na segunda prateleira. Não é um cachorro, pensei. E aí o bichano começou a rir da minha cara, como se me conhecesse de longa data. Não tive dúvidas de que era o gato-átomo e desenhei uma versão dele no mural da cozinha. Isso nunca tinha me acontecido.
Por outro lado, não foi diferente. As crianças são superinteligentes, sensíveis e criativas. Não abri mão de escrever e estruturar o texto da maneira como acredito, sem dar respostas, deixando lacunas, usando fragmentos, propondo o inacabado e estabelecendo espaço para leitoras e leitores de todas as idades cocriarem comigo. Meus livros são sempre abertos, cheios de frestas para que quem leia também fale, para que também invente. Mesmo agora, com o livro publicado, eu mesma continuo inventando essa história.
É uma menina ou uma mulher que escreve?
É a voz da criança que conta sobre o gato e o que aprontam juntos. Mas tem uma participação especial da criança crescida, olhando para a casa tomada desse amigo imaginado.
Por que um gato e por que um gato invisível?
Ele é um gato porque os pais dele eram gatos (risos). E saiu assim debochado e “tranquiloso” porque adora relativizar o tamanho da solidão, do medo, da tristeza. Gato-átomo é um grande amigo de “filhas únicas”, como eu, porque não deixa a gente ficar de boa, pensando inerte nas caraminholas que cria. Eu sempre crio muita caraminhola. Ele é do tipo que “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”, tudo isso rindo da cara da melancolia.
O gato é como o átomo. Ninguém além dos pesquisadores da física quântica ou de um público restrito viu um átomo, uma molécula de átomos, seus elétrons, o núcleo de cada átomo com suas quantidades diferentes de prótons e nêutrons formando cada elemento diferente da tabela periódica. Mas a gente acredita neles. Viajo pensando que a física quântica é meio como a literatura oral, só que científica. Cada pesquisador vai descobrindo ou propondo hipóteses diferentes, criando um conto, aumentando um ponto. E a gente vai acreditando. Aí uma teoria desdiz a outra, um cálculo descobre mais coisas ou descarta outras. Ou seja, não é porque o gato-átomo é invisível que ele é de mentirinha.
Você fala sobre a pulsão do inventar, do imaginar. Você era uma criança que vivia na rua brincando ou vivia imaginando? Ou as duas?
Acho que as duas coisas. Eu tinha um mundo próprio, mas também pude correr na grama, brincar com outras crianças, subir em árvore, inventar trilhas exploratórias. O bom de crescer no interior do interior (sou de Concórdia, no Meio-Oeste catarinense) é que a experiência de estar no mundo tem uma diversidade muito grande de cores, de texturas, de descobertas. Eu vivia com os joelhos ralados, com farpas nos dedos. Ainda gosto da ideia do dinheiro ser um maço de folhas verdes, colhidas do pé de amoras do quintal da vó. E a preocupação era se no “Dois ou um” eu teria que correr para um esconderijo ou contar até 100. Eu achava bem ruim ter que contar até 100.
A imaginação eu gastava com caraminhola e conversando com os bichos. Apesar de ter tido muitas amigas e primos para brincar, também convivi muito com os adultos. E os adultos sempre sabem muito das coisas, as crianças sempre têm que aprender a fazer tudo do jeito deles, sabichões. Aí eu cresci pensando que os adultos já tinham resolvido tudo. Que quando eu crescesse o mundo ia estar prontinho. Não ia ter mais problemas, que os assuntos sobre preservação da natureza, água, fome, desigualdade, preconceito etc, estariam todos resolvidos. A ideia que eu inventei dos adultos foi a minha pior imaginação.
Teu repertório de vivências e memórias aparece no livro ou é tudo imaginado? Aliás, é possível separar o ‘eu’ do que é inventado no processo de escrita de ficção?
Acho que na literatura de ficção o eu é, inevitavelmente, um outro. Mesmo quando se fala de autoficção. Mas, diferente do “Carne falsa”, que não tem quase nada da minha experiência; ou do “Cabeça de José” e do “Um bicho que”, que eu apenas emprestei algumas impressões particulares, no “Gato-átomo” tem muito de mim. “Gato-átomo” é minha primeira autoficção. Eu adorava me esconder quando era criança. A cena que está no livro foi um desses episódios em que tentava assustar o meu pai. Quando a peripécia não dá muito certo, é melhor ter uma boa desculpa. O Gato-átomo liga a menina que eu fui com essa criatura que eu venho me tornando.
O livro propõe diferentes camadas de leitura, inclusive para adultos. Foi proposital? Às vezes a gente cresce e esquece de inventar coisas, como se imaginar não coubesse nas tarefas da vida adulta.
Acho que a gente cresce e toma por hábito perceber depressa e dar respostas rápidas, porque no meio do caminho não tem só pedra, também tem a vida e uma enxurrada de obrigações, boletos e outras vidas que dependem da gente. Está tudo doente, nós e nosso modo de vida. Como meu cartaz que diz “cabe todo mundo no coração do cansaço”. E quanto mais cansados a gente fica, menos espaço a gente tem para imaginar, para lembrar de quem a gente é, de quem gostaríamos de ser. E facilita a nossa vida receber tudo mais simplificado. Narrativas que pegam pela mão e nos levam pé por pé, caminham com a gente toda a jornada do herói. Tenho percebido que muitos telejornais agora têm cinco comentaristas para “ajudarem” os adultos a pensarem sobre as informações. Todo fato vem com análise de conjuntura mastigada. São milhares de canais de YouTube e influencers dando opinião e explicando coisas. Todo mundo é especialista e defende uma forma de pensar, um jeito correto de agir, no que acreditar. Somado a isso, essa lógica complexa de produtividade em tudo. Não só para os adultos, as crianças também estão sobrecarregadas de tarefas. Parece estar estabelecido que o tempo só pode ser usado para produzir, para correr pelo sustento e a gente vai sendo explorado e se autoexplorando junto. E é tudo muito rápido, estimulado por essa “competitividade” tacanha que inventaram para que nos mantenhamos em disputa, para que as coisas não mudem.
O que proponho é um tempo de demora. Um espaço, dentro desse modo de vida predatório no qual caímos, para tomar ar. Para ler inventando o que não entendemos. Para não entender mesmo e aproveitar para olhar para as sensações. Deixo espaço pra gente lembrar que estamos vivos e que todas as histórias importam.
As ilustrações também ampliam as possibilidades da narrativa. E são geniais. Como foi o diálogo entre você e a René? A questão dos portais, por exemplo. Qual a metáfora por trás deles?
Eu já conhecia o trabalho da René e sempre gostei. Ela se deixou envolver pelo texto e também se propôs a voltar para sua infância, a lembrar do seu gato Prepretus, e compartilhou com a gente nos desenhos incríveis de muitos gatos – porque o Gato-átomo pode tudo! – e dessa menina sapeca. Gosto da espécie de “tradução” que a René propôs para a ideia de um gato feito da partícula que está em tudo, que é feito de possibilidades. Ela elaborou uma série de saídas, portas, reentrâncias.
Embora o espaço em que a criança aparece é de confinamento: está dentro de casa, fica presa dentro do guarda-roupa, pela relação com o gato imaginado, com a capacidade de recriar o próprio mundo por meio da leitura inventada que faz do seu entorno, ela sempre tem para onde ir, ela expande. A René é bem desse tipo de menina que imagina muito também, para sorte nossa! Foram muitas trocas com ela, sempre numa alegria compartilhada em fazermos o livro juntas. E nesse diálogo também foi importantíssimo o trabalho do editor Dennis Radünz, que coordenou o projeto editorial e foi conduzindo a junção do texto, das ilustrações e do desenho gráfico.
Por fim, a obra terá uma versão em jogo educativo e segue existindo em outras possibilidades de interação com as crianças. Qual é a ideia? Será possível adquirir o jogo ou será distribuído apenas para escolas do meio-oeste?
O livro faz parte de um projeto maior: Gato-átomo: literatura e infância no Meio-Oeste, que foi selecionado no Prêmio Elisabete Anderle 2019. O jogo educativo, desenvolvido pela Lariessa Soligo da Campo e pelo Artêmio Filho, da Sabiá Gestão Criativa, foi distribuído junto ao livro gratuitamente para ampliar o acervo e as ações de 14 bibliotecas públicas nas cidades de Alto Bela Vista, Arabutã, Concórdia, Ipira, Ipumirim, Irani, Itá, Jaborá, Lindóia do Sul, Peritiba, Piratuba, Presidente Castello Branco, Seara e Xavantina. Por enquanto, o jogo fará parte apenas desse projeto cultural, que conta ainda com outras contrapartidas sociais, como um encontro de escrita com professores da Rede Pública de Concórdia, audiolivro e um material extra com sugestões de atividades a partir do livro, o Itinerários de imaginação, do selo Nave-Nina, que já pode ser baixado gratuitamente no site da Editora Nave.
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