LampiĆ£o & Lancelote
- Nave-Nina
- 15 de jan. de 2021
- 3 min de leitura
ImaginƔrio do cangaƧo e fƔbula arturiana
criam clĆ”ssico brasileiro contemporĆ¢neo
por Dennis RadĆ¼nz
Leitores indicados: Professores e estudantes / Fundamental II
Tempo mƩdio de leitura: 3 minutos
āPois pare jĆ” eu lhe ordeno / Ć fantasma de metal / EncarnaĆ§Ć£o do demĆ“nio / Grande embaixador do mal / Logo se vĆŖ que fugiu / De um sĆ©culo medievalā, LampiĆ£o interpela injuriosamente o cavaleiro branco Lancelote. Nem Avalon, nem Camelot, essa ājustaā - um jogo marcial a cavalo, nos termos do Ciclo Arturiano - se dĆ” no Raso da Catarina, no sertĆ£o nordestino. Um duelo entre duas Ć©pocas, duas culturas e duas linguagens que realiza no plano literĆ”rio aquilo que o sociĆ³logo NĆ©stor Garcia Canclini conceituou como āculturas hĆbridasā, derivadas dos processos de mestiƧagem, de sincretismo, de crioulizaĆ§Ć£o e de fusĆ£o. Duas identidades e a diferenƧa, cruzando as formas narrativas da lenda da Idade MĆ©dia e da literatura de cordel brasileira do sĆ©c. XX, no extraordinĆ”rio recurso de superposiĆ§Ć£o que Fernando Vilela manuseia com maestria em āLampiĆ£o & Lanceloteā (Cosac Naify, 2006).

O enredo do livro Ć© claro: o cavaleiro legendĆ”rio Lancelote e o rei do cangaƧo, LampiĆ£o ā Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938) ā, sĆ£o apresentados cada qual em seu habitat. a GrĆ£-Bretanha do sĆ©culo V e o Nordeste brasileiro do inĆcio do sĆ©culo XX. Logo Lancelote atravessa tempo e espaƧos (por obra da feiticeira Morgana) e encontra o cangaceiro, que o desafia. Os dois lutam e, no emaranhado das lanƧas e das balas de parabĆ©lum, acabam vestidos um com a indumentĆ”ria do outro, e tudo termina em danƧa ā o xote, o gavotte, o xaxado (relembremos os poemas de MĆ”rio de Andrade, que costumam distender todas as suas tensƵes em danƧa). Ć estrutura narrativa linear o autor-ilustrador concedeu uma segunda narrativa, exclusivamente grĆ”fica, em que ā com uso de carimbos mĆ³veis de borracha e inspirado nas gravuras de cordel e nas iluminuras medievais ā, as cores prata (Lancelote) e cobre (LampiĆ£o) se conjugam em āfogo cruzadoā, pĆ”gina a pĆ”gina, ao ponto de āborraremā as identidades e as diferenƧas.


āLampiĆ£o & Lanceloteā se realiza como iconotexto (Kristin Hallberg), noĆ§Ć£o teorizada por Maria Nikolajeva e Carole Scott em āLivro ilustrado: palavras e imagensā, posto que esse livro com ilustraƧƵes (picture book) Ć© um livro ilustrado (picturebook) na acepĆ§Ć£o de Ćcones que para alĆ©m da narrativa verbal sĆ£o narrativa visual. Ou seja, fosse isento de palavras, o livro de Fernando Vilela continuaria a narrar, como iconotexto, relatando āas muitas acontecĆŖncias daquele dia de glĆ³riaā por meio do denso grafismo. Assim, o dualismo Lancelote-LampiĆ£o tem eco no duplo registro verbal/visual. A complexidade dos Ćcones ā da armadura, do mandacaru ou da cena da batalha ā Ć© um apelo Ć revisita do leitor, como dizem Nikolajeva e Scott sobre o livro ilustrado:
Cada nova releitura, tanto de palavras como de imagens, cria prĆ©-requisitos melhores para uma interpretaĆ§Ć£o adequada do todo. Presume-se que as crianƧas sabem disso por intuiĆ§Ć£o quando pedem que o mesmo livro seja lido para elas em voz alta, repetidas vezes. Na verdade, elas nĆ£o leem o mesmo livro; elas penetram cada vez mais fundo em seu significado. (Livro ilustrado: palavra e imagens., p.14).
Dos mais premiados livros brasileiros, āLampiĆ£o & Lanceloteā Ć© inesgotĆ”vel em suas implicaƧƵes transculturais ā āMeu povo aqui termina / Esta histĆ³ria verdadeira / Com baile, batalha e rima / Pondo abaixo uma barreira / Resultou numa geleia / Da magia europeia / Com a ginga brasileiraā. Pois Vilela, pela arte de hibridizaĆ§Ć£o, deglutiu o mundo arturiano, como provocaria Oswald de Andrade: āsĆ³ a antropofagia nos une!ā.

REFERĆNCIAS
CANCLINI, NĆ©stor Garcia ā Culturas hĆbridas: estratĆ©gias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. TraduĆ§Ć£o de HeloĆsa Pezza CintrĆ£o e Ana Regina Lessa. SĆ£o Paulo: Editora da Universidade de SĆ£o Paulo, 2011.
NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole ā Livro ilustrado: palavras e imagens. TraduĆ§Ć£o de Cid Knippel. SĆ£o Paulo: Cosac Naify, 2011.
VILELA, Fernando ā LampiĆ£o & Lancelote. SĆ£o Paulo: Cosac Naify, 2006.