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Lampião & Lancelote

Imaginário do cangaço e fábula arturiana

criam clássico brasileiro contemporâneo


por Dennis Radünz


Leitores indicados: Professores e estudantes / Fundamental II

Tempo médio de leitura: 3 minutos



“Pois pare já eu lhe ordeno / Ó fantasma de metal / Encarnação do demônio / Grande embaixador do mal / Logo se vê que fugiu / De um século medieval”, Lampião interpela injuriosamente o cavaleiro branco Lancelote. Nem Avalon, nem Camelot, essa “justa” - um jogo marcial a cavalo, nos termos do Ciclo Arturiano - se dá no Raso da Catarina, no sertão nordestino. Um duelo entre duas épocas, duas culturas e duas linguagens que realiza no plano literário aquilo que o sociólogo Néstor Garcia Canclini conceituou como “culturas híbridas”, derivadas dos processos de mestiçagem, de sincretismo, de crioulização e de fusão. Duas identidades e a diferença, cruzando as formas narrativas da lenda da Idade Média e da literatura de cordel brasileira do séc. XX, no extraordinário recurso de superposição que Fernando Vilela manuseia com maestria em “Lampião & Lancelote” (Cosac Naify, 2006).



O enredo do livro é claro: o cavaleiro legendário Lancelote e o rei do cangaço, Lampião – Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938) –, são apresentados cada qual em seu habitat. a Grã-Bretanha do século V e o Nordeste brasileiro do início do século XX. Logo Lancelote atravessa tempo e espaços (por obra da feiticeira Morgana) e encontra o cangaceiro, que o desafia. Os dois lutam e, no emaranhado das lanças e das balas de parabélum, acabam vestidos um com a indumentária do outro, e tudo termina em dança – o xote, o gavotte, o xaxado (relembremos os poemas de Mário de Andrade, que costumam distender todas as suas tensões em dança). À estrutura narrativa linear o autor-ilustrador concedeu uma segunda narrativa, exclusivamente gráfica, em que – com uso de carimbos móveis de borracha e inspirado nas gravuras de cordel e nas iluminuras medievais –, as cores prata (Lancelote) e cobre (Lampião) se conjugam em “fogo cruzado”, página a página, ao ponto de ‘borrarem’ as identidades e as diferenças.



“Lampião & Lancelote” se realiza como iconotexto (Kristin Hallberg), noção teorizada por Maria Nikolajeva e Carole Scott em “Livro ilustrado: palavras e imagens”, posto que esse livro com ilustrações (picture book) é um livro ilustrado (picturebook) na acepção de ícones que para além da narrativa verbal são narrativa visual. Ou seja, fosse isento de palavras, o livro de Fernando Vilela continuaria a narrar, como iconotexto, relatando “as muitas acontecências daquele dia de glória” por meio do denso grafismo. Assim, o dualismo Lancelote-Lampião tem eco no duplo registro verbal/visual. A complexidade dos ícones – da armadura, do mandacaru ou da cena da batalha – é um apelo à revisita do leitor, como dizem Nikolajeva e Scott sobre o livro ilustrado:


Cada nova releitura, tanto de palavras como de imagens, cria pré-requisitos melhores para uma interpretação adequada do todo. Presume-se que as crianças sabem disso por intuição quando pedem que o mesmo livro seja lido para elas em voz alta, repetidas vezes. Na verdade, elas não leem o mesmo livro; elas penetram cada vez mais fundo em seu significado. (Livro ilustrado: palavra e imagens., p.14).

Dos mais premiados livros brasileiros, “Lampião & Lancelote” é inesgotável em suas implicações transculturais – “Meu povo aqui termina / Esta história verdadeira / Com baile, batalha e rima / Pondo abaixo uma barreira / Resultou numa geleia / Da magia europeia / Com a ginga brasileira”. Pois Vilela, pela arte de hibridização, deglutiu o mundo arturiano, como provocaria Oswald de Andrade: “só a antropofagia nos une!”.



REFERÊNCIAS


CANCLINI, Néstor Garcia – Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. Tradução de Heloísa Pezza Cintrão e Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011.

NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole – Livro ilustrado: palavras e imagens. Tradução de Cid Knippel. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

VILELA, Fernando – Lampião & Lancelote. São Paulo: Cosac Naify, 2006.





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